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Dungeons & Dragons é uma ilustração perfeita de como o capitalismo deforma qualquer empreendimento artístico para seus próprios fins. (Esther Derksen via iStock / Getty Images)

Dungeons & Dragons é a prova de como o capitalismo mata a arte

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Tradução
Luiz Fernando Lunardello

A trajetória de Dungeons & Dragons não é apenas uma história sobre jovens nerds criando um jogo muito popular e perdendo o controle depois. É também sobre como os ditames do capitalismo inevitavelmente acabam arrancando a alegria comunal até mesmo das nossas atividades de lazer.

Resenha de Game Wizards: The Epic Battle for Dungeons & Dragons, por Jon Peterson (MIT Press, 2021)


RPGs de mesa de alto nível (cuja sigla correta é TTRPGs, para nerds insuportáveis como eu) de repente se tornaram uma mercadoria quente. Para aqueles de nós que são fãs há muitas décadas, é difícil acreditar que aquela coisa que nos ridicularizou no ensino médio de repente é um grande sucesso. Existem podcasts e webséries sobre TTRPGs! Filmes de sucesso também! Celebridades os jogam! O que antes era um lugar pequeno e marginalizado hobby já obscuro agora é… bem, ainda muito pequeno, mas está crescendo. E você não pode falar sobre TTRPGs sem falar sobre o avô de todos eles, o primeiro e maior RPG que já existiu: Dungeons & Dragons (D&D).

D&D é o Poderoso Chefão desse hobby (ou, em termos de jogo, uma hidra de sete cabeças). Mas não é apenas porque foi o primeiro – a maioria dos fãs, inclusive, argumentaria que não é o melhor. Uma grande parte de sua fama é a história do jogo enquanto negócio. O sucesso inesperado, as dificuldades financeiras que se aprofundaram à medida que ele crescia e a perda e alienação de seus dois co-criadores criam uma narrativa tão convincente quanto qualquer outra dentro do próprio jogo – e mostram os perigos de colocar o lucro antes do propósito, em qualquer forma de arte.

Após a morte dos criadores, Gary Gygax e Dave Arneson, em 2008 e 2009, respectivamente, houve um aumento de interesse nas origens do TTRPG, principalmente porque a base de fãs do jogo se expandiu durante a pandemia da COVID-19. Entra em cena o Game Wizards: The Epic Battle for Dungeons & Dragons de Jon Peterson, que se concentra no lado comercial do D&D, examinando um período de aproximadamente 12 anos desde a sua criação, em meados dos anos 70, até o momento em que Gygax perde o controle da TSR, Inc., sua editora e empresa. É uma visão surpreendente, fascinante e muitas vezes deprimente das disputas legais, guerras corporativas e amargas recriminações pessoais que acompanharam o jogo enquanto ele transmutava de um momento de diversão de um pequeno grupo de entusiastas com ideias semelhantes, para um negócio internacional.

Ascensão e queda da TSR, Inc.

Peterson foi uma ótima escolha de “roteirista” para Game Wizards, o primeiro de uma série sobre a história e a cultura dos jogos da MIT Press. Ele é um entusiasta do hobby sem ser um fanboy acrítico, e seu conhecimento de TTRPGs (e D&D em particular) é amplo e profundo. Seu estilo de escrita não é chamativo, mas convincente, e ele constrói a história da ascensão e queda da TSR de forma sólida e inteligente. Ele mantém o contexto em primeiro plano, mas fornece detalhes suficientes para manter os leitores envolvidos, e o livro é tão bem documentado quanto qualquer trabalho acadêmico – uma espécie de milagre, dadas as histórias muitas vezes contraditórias, e em constante mudança, sobre a TSR ao longo dos anos.

Mas por que alguém fora da bolha do TTRPG deveria se importar com Game Wizards? De modo geral, hobbies têm muito apelo para nós, socialistas, que olhamos para o estado do mundo e desejamos que pudéssemos construir um outro, alternativo, onde a vida seria mais justa e as pessoas estariam mais dispostas a enfrentar a tirania. Como qualquer hobby, os TTRPGs passaram por revoluções sociais e políticas. Enquanto os jogadores originais de D&D eram, em grande parte, do meio-oeste dos EUA com uma inclinação libertária, o hobby logo foi influenciado por uma onda de psicodelia dos anos 70 enquanto viajava para o oeste, e acabou sendo levado para todas as outras direções possíveis, do neofascismo ao socialismo mais tradicional.

Um jogo de Dungeons & Dragons. (Ville Miettinen / Flickr)

Mas Dungeons & Dragons também é uma ilustração perfeita de como o capitalismo dobra e deforma qualquer empreendimento artístico para seus próprios fins, e como, quaisquer que sejam os detalhes específicos da situação ou as intenções das pessoas envolvidas, a demanda por lucro sempre substituirá o desejo por valor estético ou integridade artística. Assim como a televisão, que coloca os objetivos de seus criadores atrás das demandas dos anunciantes; e filmes, que respondem mais a contadores e profissionais de marketing do que ao público e cineastas; os jogos de RPG se dobram a proprietários que se preocupam mais com o resultado final do que com necessidades na jogabilidade e história.

Peterson observa, desde o início, que o D&D foi um sucesso improvável. Embora Gygax tivesse abandonado uma vida confortável e segura para perseguir seu hobby, ele provavelmente nunca esperava ganhar mais do que uma renda modesta. Uma grande razão para isso é que D&D nunca foi feito para ser um produto. Ele não estava inicialmente interessado em vender a linha de produtos descolada e gourmet que vemos nas livrarias hoje; ele queria vender, na verdade, um conjunto de regras, essencialmente diretrizes, para o jogo, que poderiam ser facilmente adotadas e adaptadas a qualquer cenário que outros jogadores quisessem inventar. Ele queria isso porque foi exatamente o que ele fez, enquanto jogador e criador do jogo, valendo-se da fantasia no melhor estilo J.R.R. Tolkien aplicada à sua paixão por jogos de guerra.

“Os jogos de RPG se dobram a proprietários que se preocupam mais com o resultado final do que com necessidades de jogabilidade e história.”

Quando essas regras colidem com um momento único no zeitgeist cultural, e se tornaram mais bem-sucedidas do que ele e Arneson haviam previsto, o TTRPG mudou de um hobby para uma indústria, e a TSR, Inc. “de clube para uma empresa”.

Para crescer, a empresa teve que expandir. Para expandir, teve que adquirir capital e assumir dívidas. E para pagar a dívida, teve que expandir ainda mais. À medida que os acionistas da TSR começaram a pensar que a expansão financeira da empresa era mais importante do que pagar seus autores, artistas e designers um preço justo por seu trabalho, os trabalhadores – não apenas os funcionários da empresa, mas os próprios fundadores – sentiram a familiar sensação de alienação de seu trabalho.

Arneson, que sempre apreciou mais o lado criativo da coisa, queria seguir outros projetos de TTRPG, mas a TSR negou-lhe crédito por seu trabalho, desencadeando anos de disputas judiciais. A conclusão disso tudo lhe garantiu uma renda vitalícia, mas o deixou amargo e com a sensação de que ele era desvalorizado pelo trabalho criativo que tornou D&D uma realidade. Gygax, enquanto isso, superestimou seu próprio tato para os negócios, e acabou sendo transformado em um pária e, finalmente, forçado a sair de sua própria empresa. Perdeu o controle do fenômeno que criou e trabalhou em projetos menos prestigiosos; sua antiga empresa continuou a crescer, mas teve vários anos difíceis com o declínio de sua reputação, liderança fraca e caos financeiro, até que finalmente foi engolida por uma empresa maior e com mais dinheiro para gastar.

O mal triunfa no final

Peterson reconta essa história em Game Wizards, mas enquanto o livro termina em 1985, a história completa de D&D não e vai além. A TSR, Inc. acabaria passando por períodos de má administração, pausas criativas e falta de lucratividade, ainda que enfrentasse a concorrência de empresas mais jovens e mais objetivas, que levaram as ideias criadas por Gygax e Arneson para novos rumos.

Em 1997, a TSR foi adquirida por uma empresa de Seattle chamada Wizards of the Coast que, alguns anos depois, foi arrebatada pela gigante de jogos Hasbro, tornando-se outra máquina geradora de receita em seu enorme portfólio corporativo. Os resultados têm sido previsíveis. O D&D pode estar mais popular do que nunca, mas é apenas mais uma engrenagem lucrativa em uma empresa repleta delas, que certamente abandonará o título caso caia a popularidade, para que seja comprado por outra mais interessada no valor de seu nome do que o jogo em si.

“Isso é mais do que apenas um desdém hipster pela popularidade repentina; é um reconhecimento de que o capitalismo sempre colocará o lucro primeiro e a arte depois – ou por último.”

O jogo passou por reformulações pensadas mais em vender produtos do que em melhorá-lo; seu site principal, D&D Beyond, introduziu um conjunto de inovações de alta tecnologia para trazê-lo para a era da internet, mas também se tornou notório por extrair o máximo de dinheiro possível dos consumidores por meio de licenciamento abusivo e constante upselling [Técnica de vendas em que um vendedor convida o cliente a comprar itens mais caros, atualizações ou outros complementos para gerar mais receita – ao invés de oferecer uma versão básica ou menos incrementada do produto]. O valor pago pelas cópias digitais dos livros é quase o mesmo das cópias impressas; e itens cosméticos, como dados temáticos e produtos derivados para crianças e adolescentes, são fabricados em massa enquanto o jogo principal, em si, permanece significativamente moribundo.

Um broche de realidade aumentada da marca Dungeons & Dragons. (Pinfinity)

Além disso, o drama corporativo nos bastidores que alimenta a narrativa da Game Wizards vai muito além da venda da TSR, Inc. e suas propriedades relacionadas ao D&D para a Hasbro. A viúva de Gygax, Gail, manteve uma disputa pesada e pública com investidores, parentes e outros pretendentes de seu legado, enquanto que no ano de 2020, nada menos que três grupos surgiram para se apresentar como o “novo” TSR, Inc., incluindo um liderado pelo filho de Gygax, Ernie, que rapidamente se diferenciou dos demais com afirmações absurdas e exageradas, além de declarações racistas e transfóbicas (Tal pai, tal filho: o próprio Gygax não achava que os TTRPGs iriam, ou deveriam, atrair as mulheres por causa de “diferenças na função cerebral”). É uma história sombria sobre heróis caídos, onde o mal vence no final, e nada fica bem.

O problema é que não precisava ser assim.

A licença de jogo aberto

Gygax nunca imaginou que transformaria o D&D em um gigante corporativo. Ele só queria tornar mais fácil para outras pessoas participarem de seu hobby favorito. Apenas quando a lógica orientada para o lucro do capitalismo começou a ditar a direção do jogo que tudo começou a desmoronar.

Teria sido bastante fácil liberar a estrutura básica do D&D, livre das garras litigiosas da aplicação de direitos autorais, para o público em geral fazer com ela o que quisesse. “Home brews” [gíria para campanhas de jogos caseiros] – campanhas, configurações e até conjuntos de regras derivados da mecânica de D&D, mas adaptados aos desejos criativos de pequenos grupos e indivíduos – sempre foram uma grande parte do hobby do amantes do TTRPG. Algumas das maiores inovações e expressões mais criativas vieram de criadores que pegaram a estrutura original do jogo e criaram seus próprios mundos para jogar. Alguns (o cenário de grande sucesso de Eberron, por exemplo, e o terror gótico Ravenloft) inclusive que a TSR transformou em parte de seu licenciamento oficial.

“D&D nunca foi um jogo perfeito, mas é tão memorável quanto o nosso primeiro amor. Foi uma experiência formativa.”

Isso se tornou canônico durante os anos da Wizards of the Coast quando, reconhecendo a popularidade dos “Home Brews”, as infinitas versões piratas de sua propriedade intelectual e a dificuldade de fazer valer seus direitos autorais, a TSR lançou a Open Game License (OGL) [Licença de jogo aberto]. Isso permitiu que outros editores e criadores lançassem produtos, dentro de limites definidos, usando a estrutura de D&D, mas não vinculados às restrições de propriedade intelectual da empresa. Embora tenha se tornado apenas mais uma fonte de receita para a Hasbro, o OGL apontou uma direção que poderia ter libertado todo o hobby TTRPG das garras do capital lá no início.

Sem as demandas do mercado e os ditames que a acompanham, e que sufocam a criatividade em favor da lucratividade, os TTRPGs poderiam ter sido parte do domínio público, com os jogadores livres para construir e expandir as ideias que quisessem, sejam as originárias ou extraídas de outras fontes. Os jogos poderiam ter sido como beisebol. Enquanto a Major League Baseball (MLB), por exemplo, desfruta de um monopólio da versão profissional do jogo, apoiada pelo governo e amplamente lucrativa, ninguém é dono do beisebol em si e, fora dos limites da máquina de marketing multibilionária da MLB, milhões de pessoas assistem e jogam, competem em torneios, e divertem-se com um hobby fértil e maleável que pertence ao povo. Não há outra razão além da ganância para que os TTRPGs não possam fazer o mesmo.

Gary Gygax, que criou D&D junto com Dave Arneson, retratado em 1999. (Moroboshi / Wikimedia Commons)

Lucro primeiro, arte depois

Eu tenho jogado Dungeons & Dragons desde os meus 12 anos. Naquela época, o TTRPG havia crescido de marginal para um fenômeno nacional; ao longo dos anos, fiquei alarmado e satisfeito ao vê-lo expandir cada vez mais e acomodar uma gama cada vez maior de visões, ideias e estilos de jogo, recebendo um corpo de jogadores mais diversificado do que eu pensava ser possível naquela época.

D&D nunca foi um jogo perfeito, mas é tão memorável quanto o nosso primeiro amor. Foi uma experiência formativa. Alguns dos momentos mais agradáveis da minha vida foram passados em torno de uma mesa, jogando dados esquisitos e fingindo ser um mago.

Mas o crescimento da Marvel e da DC, de pequenas empresas que fazem quadrinhos para crianças a gigantes corporativos produzindo conteúdo para gerar bilhões, fez com que o amor que muitos de seus fãs tinham pelos personagens sumisse. A arte já foi, há muito, uma atividade de lazer em casa, passada de pais para filhos; agora é uma indústria de bilhões de dólares, cujos principais atores são gananciosos e politicamente tóxicos. A forma como a Disney controla seus produtos para maximizar o lucro lhes rendeu muito dinheiro, mas lhes arrancou o coração e a alma, que eram suas características principais.

Isso é mais do que apenas desdém hipster pela popularidade repentina do que antes era apreciado por alguns seletos; é um reconhecimento de que o capitalismo sempre colocará o lucro primeiro e a arte depois – ou por último. É ingênuo pensar que a mesma coisa não acontecerá com os TTRPGs. Esses são todos problemas específicos do capitalismo: quadrinhos, filmes, hobbies e jogos existem em Estados que antigamente seriam autodenominados socialistas, eram considerados propriedade do povo, não apenas mercadorias controladas por investidores já cheios de dinheiro.

O livro Game Wizards não é apenas uma história cativante sobre como um homem perdeu o controle de seu sonho. É também uma lição objetiva sobre a forma como o capitalismo invariavelmente arranca a alegria comunal até mesmo das nossas atividades de lazer.

Sobre os autores

é um escritor e editor de Chicago. Ele é um organizador dos Socialistas Democráticos da América (DSA) e estuda a interseção da política da classe trabalhadora e a cultura americana do século XX.

Cierre

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Published in América do Norte, Análise, Capital, Cultura and Livros

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